ENTREVISTA | Conversamos com Paolo Demuru, autor de "Políticas do Encanto"
A política virou disputa de símbolos, afetos e pertencimento. E talvez o maior desafio do progressismo hoje seja esse: voltar a sonhar — e fazer sonhar.
Com Bolsonaro inelegível, seria a hora ideal para a esquerda recuperar popularidade junto ao povo, certo? Bem, não exatamente: mesmo com o bolsonarismo em alta ou em baixa, o governo segue enfrentando queda de popularidade, acumulando derrotas e com dificuldade para comunicar conquistas, como a isenção no IR e a conta de luz mais barata. É um problema complexo: perpassa a política, a comunicação, a representatividade...
Mas há uma face mais profunda e simbólica nessa disputa: a do encanto. Ou da falta dele. Num cenário onde as narrativas sedutoras sempre derrotam o debate racional, esse fenômeno ganha força, especialmente nas redes sociais, onde a extrema-direita tem dominado a arte de capturar corações e mentes. Como explica Paolo Demuru, autor de "Políticas do Encanto: Extrema Direita e Fantasias de Conspiração" (Editora Elefante, 2024), a saída não parece ser fazer o "jogo da direita", adotando fake news, linguagem de ódio e teorias da conspiração, mas entender por que elas funcionam ao oferecer "respostas simples a questões complexas".
Doutor em Semiótica pela Universidade de Bologna e pela USP, vice-presidente da Associação Brasileira de Semiótica, professor e articulista, Paolo conversou com o Projeto Brief sobre o que são "políticas do encanto", e a importância desse tema na política atual.
Spoiler importante: não é só sobre o que você fala, mas como você constrói estratégia política.
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Aqui no Brief, acreditamos que não faz sentido lutar contra a IA – o caminho é usá-la com ética e propósito, em prol da informação de qualidade e com o objetivo de ampliar pontes e conexões reais. Por isso, vamos testar hoje o #BriefCast: um resumo em formato de podcast da nossa entrevista com Paolo Demuru, feito com a plataforma Notebook LM, da Microsoft. Dá pra ler tudo na íntegra ou ouvir o essencial enquanto toma um café.
1. Em tempos de crise econômica, crise da democracia e crise da verdade - por que falar de sonhos, símbolos e encanto é importante?
Mais do que importante, é essencial. Parece que nos esquecemos, mas os sonhos, as utopias, os encantos são o pão cotidiano da vida política. Sem eles, não há envolvimento, participação, interesse. Sem eles não se constrói pertencimento coletivo, conexão social, afeição em relação à coisa pública, seja esta entendida como um serviço básico (educação, saúde, etc.) ou como o próprio Estado Democrático de Direito. Em tempos de crise da democracia, produzir encantamento é crucial para que se saia da crise, para que a democracia possa, de alguma forma, ser preservada, ou até mesmo reinventada. Não salvaremos a democracia falando que a extrema-direita, os Trumps e os Bolsonaro de nosso tempo a ameaçam. Não salvaremos a democracia falando estritamente de democracia, explicando racionalmente as suas vantagens enquanto sistema político. Salvaremos a democracia fabricando e difundindo desejos de um mundo melhor, de uma sociedade econômica e socialmente mais justa, de trabalhos e salários mais dignos, de mais tempo livre para passar com família e amigos, de viver bem, juntos, em nossas cidades, florestas e mares. Nesse sentido, concordo com Naomi Klein, a qual disse recentemente que é necessário, para disputar as maiorias e lutar contra a atual deriva democrática, promover a crença radical neste mundo aqui, no mundo em que vivemos, mostrar suas maravilhas, e não apenas delinear cenários catastróficos, encarnados em frases de efeito como “o mundo está acabando”, “estamos próximos do fim” e similares. É o que fez até agora o discurso sobre as mudanças climáticas, que gerou mais angústia e paralisia do que ações e enfrentamentos concretos (veja-se, por exemplo, o fenômeno da assim chamada “ansiedade climática”). Para ganhar esta batalha, precisamos de outras estratégias, de mais positividade e menos negatividade, em muitos sentidos, semânticos e psicológicos. Em suma, para uma nova realidade, precisamos de novas fantasias.

2. Ser progressista, ou de esquerda, não é exatamente disputar sonhos e utopias de futuros melhores? O que a gente quer dizer quando aponta que a esquerda perdeu o capital simbólico?
De fato, a partir dos anos de 2010, a esquerda perdeu não apenas a capacidade de enquadrar o debate público - isto é, de impor suas pautas - mas também a habilidade e o poder de produzir e difundir utopias e símbolos próprios. Na década de 2000, os fóruns e os movimentos antiglobalização (Porto Alegre, Seattle, Genova) tinham um slogan simples e forte: “um outro mundo é possível”. Era um lema que projetava um sonho, um futuro, uma ideia, como também a vontade de realizá-los. Isso se perdeu. As políticas e a comunicação do campo progressista tornaram-se cada vez menos criativas e mais reativas. O tempo foi gasto tentando revidar os líderes, as propostas, as falas e os slogans da extrema-direita: “ele não”, “sem anistia”, “o que o Nikolas Ferreira diz no vídeo sobre o PIX é falso”, e assim por diante. De novo, é preciso construir e promover um conjunto de temas, ideias e valores outros, que reconfigurem e reorganizem o campo do debate público, alterando seus atuais equilíbrios. O mote da campanha para o fim da escala 6x1 - “Vida além do trabalho” - aponta exatamente para este caminho. Não fala do Nikolas, não diz o que o Bolsonaro fez ou não fez. Muda o enquadramento, propõe algo novo. É positivo, não negativo, e traça um futuro utópico e, ao mesmo tempo, possível. Um futuro no qual vida e trabalho não se opõem, mas se tornam mais humanos, justos e dignos. Assim, desarma de antemão as críticas de quem afirma que os defensores do projeto são “vagabundos” que não querem trabalhar, ou gente que não sabe como funciona a economia. A oposição semântica que ele constrói - que é a quadra onde ela convida os rivais a disputar a narrativa - não é vida vs trabalho, mas dignidade vs degradação, humanidade vs desumanidade. Trata-se de algo difícil de desconstruir e contra-argumentar. E é exatamente por isso que foi a campanha que, em termos de repercussão midiática, alcance e envolvimento de pessoas de diferente extração social e visões ético-políticas, teve mais êxito. Esse é o tipo de capital simbólico que a Esquerda precisa.
3. Nos últimos anos, nos acostumamos a ver a extrema-direita usando uma comunicação urgente, fazendo denúncias e acusações graves e usando a máquina digital para estimular o ódio e o radicalismo das pessoas. Onde esse discurso se encontra com uma ideia de política do encanto?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o ódio é uma paixão forte, que mexe com os ânimos das pessoas. E, como tal, o ódio encanta e provoca prazer. Isso por dois motivos. Em primeiro lugar, porque o ódio dirige-se a inimigos precisos, apontados como causas dos males contemporâneos. É neles que a raiva é descarregada. Em segundo lugar, o ódio aglutina, cria pertencimento coletivo. Quem odeia, odeia mais quando odeia junto, e odiar juntos fortalece a identidade de grupo. Ao gritar e ameaçar o outro, o hater (o odiador) pisca os olhos para seus pares. O ódio é “contra” (eles) e “para” (nós). Só pode ser entendido enquanto fonte de encantamento se levarmos em conta essas duas diretrizes entrelaçadas. Além disso, conforme aponta a pergunta, a estratégia da urgência serve também para criar maravilhamento. As fake-news e as fantasias de conspiração mobilizadas pela extrema-direita forjam adeptos em um perene estado de excitação, transe, frenesi, prestes a agir contra o mal, seja este encarnado pelo globalismo, pelo marxismo cultural, pelo STF, George Soros ou outros supostos inimigos do povo. Nas histórias contadas por esses sujeitos, o seguidor é convidado a participar nesta luta, ficando constantemente alerta, indo atrás de sinais e indícios que comprovem suas teorias, atendendo ao chamado do grupo e de seus líderes. Tal encanto é tão forte que, cada vez mais, dá vida a gestos reais, como a invasão do Capitólio de Washington e o ataque contra as instituições brasileiras de 8 de janeiro de 2023, ou, mais recentemente, o assasinato da deputada norte-americana Melissa Hortman.
4. Em que momento histórico ou estratégico o progressismo perdeu (ou perde) a conexão com o encanto e o sonho, e por que é tão difícil de ser recuperado?
A pergunta é ampla e poderíamos abordar o problema considerando diferentes épocas históricas. Mas prefiro delimitar a resposta ao século XXI e reafirmar o que disse antes: a virada se deu nos anos de 2010, após as chamadas “primaveras”, os movimentos dos “indignados” na Espanha, o “Occupy Wall Street”. Aliás, este último tinha um slogan potente: “somos 99%”, que construía de modo eficaz a ideia de que existe uma maioria absoluta em relação aos pouquíssimos (1%) que detém a quase totalidade do poder e dos bens materiais e imateriais do mundo. Após esse período, assistiu-se à ascensão da extrema direita em escala internacional, em sintonia com a consolidação da estrutura algorítmica das mídias sociais. Hoje, lutar contra esse sistema é uma tarefa árdua. As redes favorecem a difusão de conteúdos baseados principalmente em paixões negativas, promovem desinformação e ocultam pautas progressistas. O vínculo político-financeiro entre os donos das plataformas (Musk, Zuckerberg, Bezos) e líderes como Donald Trump é cada vez mais sólido. Mesmo assim, é preciso disputar este espaço e, mais ainda, agir fora deles, retomar e defender a experiência política corpo a corpo, pele a pele. Em um mundo cada vez mais digital e desumanizado - nas múltiplas acepções do termo - voltar à presença é um gesto político imprescindível e estrategicamente eficaz. A extrema-direita fez isso. Engana-se quem pensa que seu sucesso se deve apenas à sua expertise e destreza no ambiente digital. Ela conseguiu chegar onde chegou por promover contato, pertencimento sensível, ocupando as ruas, as estradas, promovendo encontros físicos de diverso tipo, em bairros, igrejas, escolas. Trata-se de uma dimensão subestimada, que torna ainda mais difícil reverter a situação atual.
Dito isso, o progressismo tem suas responsabilidades. Deixou de imaginar, de ser mais audacioso, contribuiu à radicalização das sociedades com posturas tímidas e excessivamente cautelosas, pragmatistas, enquanto o outro lado sonhava e procurava realizar seus sonhos, empurrando a opinião pública rumo a posições cada vez mais extremistas. Como muitos já explicaram, isso foi feito lançando mão de ideias consideradas inicialmente inaceitáveis ou até absurdas pela maioria (pelo estado mínimo, privatizar tudo de uma vez) que, após um tempo de digestão, foram reformuladas em versões aparentemente mais leves e circunscritas: privatizar a saúde, escolas e até água, como aconteceu recentemente em São Paulo. E dessa forma, aos poucos, privatizou-se tudo, como inicialmente projetado. É a assim chamada “Janela de Overton”, que descreve o conjunto de valores considerados aceitáveis em um dado momento histórico. Anat Shenker-Osorio explica isso muito bem em seu livro Don’t buy it. The trouble about talking nonsense about the economy, mostrando como o Partido Republicano conseguiu, aos poucos, convencer o povo norte-americano da necessidade de programas de privatizações irrestritas. Quando Trump diz que vai anexar o Canadá ou transformar Gaza num resort, muitos riem porque os consideram simples disparates. Mas o disparate tem outros fins, entre eles introduzir o inimaginável (ainda que em forma de absurdo) e, de forma velada e paulatina, iniciar o processo de sua normalização. Por outro lado, o campo progressista - salvo algumas exceções - segue sendo extremamente racional e pragmático, buscando sempre o meio-termo, o compromisso a qualquer custo, o menos pior. Mas o “menospiorismo” - poderíamos chamá-lo assim - não pode ser a filosofia política de nosso tempo. O momento requer coragem e audácia, seja no que diz respeito às ações concretas, seja no que diz respeito à linguagem e ao discurso.
5. Ao longo dos anos, temos entendido que atacar as bandeiras da extrema-direita relacionadas a valores profundos (liberdade, família e identidade, por exemplo) tem sido não apenas ineficiente como um erro estratégico - afinal, não somos contra esses valores. Como fazer oposição a um discurso de valores? O jeito é atacar, acusar, passar por cima ou ignorar?
Tudo, na comunicação política, é uma questão de estratégia, contexto e momento. Haverá vezes em que ignorar será mais eficaz, e outras não. No entanto, de uma perspectiva mais geral, o que posso dizer é que não se pode deixar que temas como liberdade, família, identidade, mas também trabalho ou segurança se tornem propriedade da extrema-direita. Atacar tais bandeiras é claramente um erro estratégico, pois se trata de valores universais e incontornáveis. Muito pelo contrário, é preciso defendê-las, mas de outra forma, com outras linguagens e discursos que mudem seus contornos semânticos. Chegamos, aqui, no cerne do problema. A questão não é falar ou não falar de família, identidade, liberdade e etcetera, mas “como” falar deles. Como acabo de dizer, este “como” vai depender de contextos específicos. O tema da família, por exemplo, pode ser construído de maneira diversa conforme o público ao qual nos dirigimos. Mas, novamente, além das nuances, há um ponto geral que, para um progressismo que busca formar maiorias, é crucial: como falar dessas pautas em chave inclusiva, traçando pontes entre valores e setores distintos da sociedade? Como diz a filósofa Chantal Mouffe, para um populismo de esquerda - isto é, para uma esquerda que quer ser maioria - a grande questão é traçar equivalências entre demandas e grupos sociais distintos. Tais demandas e grupos têm, claro, suas especificidades, mas, em algum lugar, elas têm que convergir, formando uma rede. É preciso encontrar um terreno comum de valores compartilhados, termos, palavras, símbolos dentro dos quais as diferenças possam conviver preservando o seu status de diferenças. Isso implica, em primeiro lugar, abandonar uma postura agressiva ou arrogante no diálogo com quem não compartilha as mesmas visões de mundo, ouvir o que o outro tem a dizer, acolher suas demandas, buscar nexos com as nossas. Resumindo, delimitar um quadro de valores comuns e, após isso, abordar as particularidades, traçando conexões.

6. Além da estrutura das políticas do encanto, essa pesquisa e trabalho está muito vinculada à construção de símbolos (desde políticos e influenciadores que figurem como heróis até símbolos estéticos, como bandeiras e motes de comunicação). Está claro que, para a extrema-direita, eles caminham juntos e são indissociáveis. Mas é possível produzir encanto sem esse poder simbólico? Para pautar boas políticas do encanto com a sociedade, teremos que produzir ícones e ídolos que representam essas pautas?
A dimensão simbólica é central na disputa político-comunicacional. Não há política sem símbolos. A extrema-direita sabe disso muito bem. A apropriação de símbolos como a bandeira nacional ou a camisa da seleção foi central em sua ascensão. Foi também graças a ela que o bolsonarismo conseguiu chegar onde chegou. O próprio Bolsonaro, chamado de “Mito”, tornou-se um símbolo. Assim como Lula, claro. Mas é fato que o campo progressista não conta, hoje, com um leque de símbolos capaz de produzir envolvimento e participação em larga escala. Ora, para entender melhor o tamanho do problema, é preciso dizer que símbolos não são coisas, nem muito menos coisas fixas que possuem, desde sempre, esse estatuto. Símbolos não nascem símbolos. Símbolos se tornam símbolos após um processo de simbolização. E o que é o que faz um símbolo? Umberto Eco tem uma boa definição: símbolo é qualquer elemento do mundo (uma cor, uma forma, uma bandeira nacional, uma figura qualquer, como uma pomba ou uma árvore, mas também uma pessoa, um livro, um filme) que consegue reunir e canalizar, em si, uma série de significados distintos e até potencialmente contraditórios. Isso tem a ver com o que afirmei na resposta à pergunta anterior. Bons símbolos constroem pontes, nexos, ligações entre grupos e demandas distintas, porque as diversidades, no símbolo, podem conviver, encontrando um terreno comum. Além disso, o símbolo é uma força, possui uma energia, uma carga de pulsões e paixões suscetível de mobilizar o corpo social. As bandeiras nacionais mexem nos ânimos das pessoas. Os hinos também. A esquerda precisa pensar e produzir símbolos com base nestas diretrizes. Algo próximo ao que acabo de descrever se deu com o filme Ainda estou aqui e, em particular, com a figura de Fernanda Torres/Eunice Paiva. Por sua estrutura narrativa, e por falar da ditadura a partir do tema da família (vejam como se pode falar de família de outras formas), o longa-metragem se tornou um símbolo aglutinador de sentidos diversos (família, resistência, feminismo, defesa da democracia, liberdade) e uma força geradora de emoções coletivas. Mesmo assim, o governo perdeu a ocasião de construir, na esteira da comoção causada pelo filme, símbolos institucionais contra os golpes antigos e presentes, em defesa do Estado Democrático e, por que não, em prol da liberdade de modo geral. Teria sido uma oportunidade única para se reapropriar do termo/conceito de liberdade, tão caro hoje à extrema-direita. Enquanto isso, esta última continua a fabricar seus símbolos. Pensemos, a este propósito, na Débora Rodrigues dos Santos, que escreveu “Perdeu Mané” com seu batom na estátua do STF durante os ataques de 8 de janeiro de 2023. Tanto ela quanto o batom se tornaram símbolos da anistia e da resistência contra “o sistema”.
7. A vitória de Lula em 2022 foi uma conquista histórica para o campo progressista. Mesmo assim, vários fatores (percentual de votação, taxas de aprovação, composição do Congresso) deram ao campo progressista a impressão de que "ganhamos, mas não levamos": muitas vezes, nem quem votou e apoia o governo se empolga ou acredita nas propostas e projetos. Quais fatores explicam essa crise de convencimento e engajamento?
O problema é que nem o governo parece acreditar muito em suas propostas e projetos. Se quem está no poder não promove engajamento e participação em torno de suas pautas centrais, o jogo está perdido desde o princípio. A comunicação do governo sobre seus programas tem sido muito tímida e acuada. O melhor jeito de prevenir ataques como aqueles de Nikolas Ferreira sobre a medida que previa o monitoramento das transações via PIX acima de R$ 5000 teria sido uma promoção midiática maciça, clara e direta sobre o programa e suas razões (evitar sonegação, etcetera), que deixaria o mínimo espaço possível para mal-entendidos e procuraria criar um vínculo com o projeto e outras pautas grandes e pequenas que poderiam gravitar ao seu redor. Mas não, não fez nada e teve que correr atrás de críticas e fake news. O mesmo está acontecendo em relação à Reforma Tributária. Uma ideia forte e clara como “quem ganha mais paga mais” e “quem ganha menos paga menos” ou “não paga nada” deveria ser gritada aos quatro ventos. Há quem diga que isso não pode ser feito porque geraria desgaste com o Congresso, que é preciso levar em conta a “realpolitik” e aquilo que, em dadas condições, é de fato possível fazer. Entendo, mas, novamente, estamos jogando no campo do “menospiorismo”. E, seguindo na retranca, o adversário avança. É uma postura que não mobiliza as bases, nem ganha os indecisos, aquele meio que em 2022 votou no Lula mas que, em 2026, pode tranquilamente votar em um candidato de extrema-direita.

8. O bolsonarismo ascendeu se apropriando completamente dos mecanismos das redes sociais, que priorizam a distribuição de conteúdos radicalizadores, conspiratórios, discursos de ódio etc. É possível emplacar um discurso de encanto de uma perspectiva progressista nesse espaço - sem cair nas armadilhas do algoritmo?
Pergunta muito complexa, à qual é difícil responder, por uma razão óbvia: não temos acesso ao código que rege o funcionamento do algoritmo. Sabemos, graças às pesquisas acadêmicas e às investigações jornalísticas, que o que mais circula e seguirá circulando são, como vocês apontam, conteúdos radicalizantes, desinformação, fantasias conspiratórias, discursos de ódio. Ora, é claro que, mesmo assim, não se pode deixar este espaço vazio. O que fazer então? Além de, como já foi dito por muitos, construir ecossistemas midiáticos próprios do campo progressistas, capazes de mobilizar as bases e dialogar com o meio, articular cada vez mais os universos da vida real e da vida online. Necessitamos do trânsito entre estas duas dimensões. Rick Azevedo, do movimento VAT (Vida além do Trabalho) fez campanha nos trens e, paralelamente, no TikTok, nas redes, mas a sua presença física nas ruas do Rio de Janeiro foi essencial para a sua eleição a vereador. Uma outra estratégia possível: ao rebater fake-news ou outras peças desinformativas, não se limitar ao desmonte, mas projetar, paralelamente, algum conteúdo propositivo, que reenquadre a pauta em debate e a conduza para outros trilhos narrativos. Não dizer apenas, por exemplo, “É falso o que o Nikolas Ferreira afirma sobre as transações do PIX”, mas complementar com algo que mostre as positividades do projeto.
9. Quais os campos de atuação e valores que o campo progressista brasileiro pode apostar para disputar de forma mais estratégica a população em geral? É possível encontrarmos uma versão nossa de "Deus, pátria, família e liberdade"?
Boa pergunta. Não sei se há uma tríade ou uma fórmula tão precisa de termos/valores que seria possível impulsionar. A comparação é injusta, pois esses termos estão muito bem consolidados no campo da extrema direita e em seu imaginário. Entretanto, acho que há algumas pautas que são historicamente de esquerda e que precisam, no futuro mais próximo, ser mobilizadas. A primeira é trabalho. Não é possível que, ao longo do último governo Lula, não tenha surgido um discurso - e uma política - capaz de falar sobre as novas condições de trabalho plataformizado e propor soluções à esquerda. O discurso sobre o trabalho não pode se tornar uma prerrogativa do bolsonarismo ou de quem, como Pablo Marçal, o usa para promover sonhos de prosperidade individual. A segunda é a pauta da igualdade e da justiça social, implícita na reforma tributária. Dito isso, é preciso, ao mesmo tempo, falar dos temas hoje mais associados à direita: pátria (sim, que tipo de nação é possível imaginar em chave progressista? Não poderíamos pensarmos, por exemplo, em uma nação não nacionalista?), família, liberdade, segurança pública. De novo, a grande pergunta que se coloca é: como falar de tais pautas?
10. Por fim, quais são as experiências de encanto que registramos no campo progressista, ultimamente? E quais as "apostas" que podemos fazer para encantos possíveis para os próximos tempos?
A campanha para o fim da escala 6x1, pelas razões que expliquei acima, e também pelo modo por meio do qual ela fala de família. De um jeito inclusivo, que fala para todas as famílias brasileiras, propondo algo simples e universal: os membros da família precisam de tempo para estar juntos. Quanto às apostas, acho que é necessário investir em temas como trabalho, clima, mas também saúde e educação e outros direitos universais. No entanto, repito, isso há de ser feito de modo diferente e, sobretudo, não de maneira isolada, mas estabelecendo vínculos e conexões entre eles. Como a semiótica nos ensina, todo sentido emerge a partir das relações. Antes das relações, não há sentido. O que nos cabe, então, é buscar novas relações possíveis para outros mundos possíveis.
Antes de terminar, convidamos a uma reflexão: qual foi a última pauta da política que te fez brilhar os olhos, pessoalmente? Aquela proposta que te deu vontade de engajar, militar, ou apenas falar apaixonadamente sobre ela por horas? Pode parecer estranho falar desses assuntos de maneira tão emocional. Mas fazer política nada mais é do que impactar e mudar a vida das pessoas. E, sendo nós cidadãos, precisamos ser os primeiros a nos encantar pelas bandeiras que defendemos. Se chegou a uma conclusão (ou mesmo se não chegou), conta pra gente, em resposta a esse e-mail, e vamos reencantar a política brasileira.
Um abraço,
Equipe do Projeto Brief.