Como “democracia” e “direita” viraram sinônimos?
A estratégia por trás dos discursos que empurraram toda a sociedade, incluindo eu e você, para perto da extrema direita. E as possibilidades para romper essa lógica.
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Se, a cada disputa eleitoral, você tem a impressão de que estamos oferecendo perspectivas cada vez menores do campo progressista, enquanto a extrema direita parece agir com cada vez mais liberdade de posicionamento político, a newsletter de hoje foi feita para você. Pode ser difícil entender como cada vez mais as sociedades têm apoiado discursos autoritários e bloqueado propostas de moderação política, como se elas fossem antidemocráticas. Não é que a definição de democracia está mudando; mas a percepção geral sobre o que ela representa tem se transformado na sociedade.
Em um mundo onde Trumps, Mileis e Bolsonaros acumulam uma série de vitórias populares, não é difícil entender para qual espectro político essa balança pende. Quanto mais a extrema-direita cresce, mais a disputa política parece ser feita entre uma série de outras direitas.
Isso tudo não é só impressão, é método. E um método que já foi captado e estudado pela Ciência Política, com uma definição de conceitos que nos ajuda a entender não só como essa dinâmica funciona, mas também como criar caminhos possíveis para escapar dela.
Desde que Donald Trump foi escolhido para voltar a governar os Estados Unidos, analistas apontam que o pior que pode acontecer em sua gestão é que ele consiga cumprir aquilo que prometeu em sua campanha. O que levaria a uma série de medidas prejudiciais para a democracia, os direitos humanos e migratórios e o respeito à diversidade e pluralidade de ideias. Trump parece estar aplicado com essa ideia, com uma equipe de governo que privilegia a proximidade pessoal e a convicção ideológica de seus líderes, no lugar da experiência e do preparo técnico. Não há dúvidas de que Trump quer montar um governo que ataque direitos reprodutivos, corte benefícios sociais e promova o maior programa de deportação da História dos EUA. Resta, aos que se opõem a esse projeto de exclusão como programa de governo, a esperança de que “as instituições” funcionem normalmente, com órgãos técnicos e mecanismos internacionais pressionando o governo a moderar seu discurso, mesmo que Trump encontre um cenário de forte apoio no Legislativo e na Suprema Corte. Daqui para a frente, podemos contar com duas certezas: primeiro, a de que Trump terá um cenário bastante favorável para avançar com seu projeto autoritário. E, segundo, que ainda assim, o presidente dos Estados Unidos e sua equipe vão passar os próximos anos fazendo propostas e declarações bem mais radicais do que aquelas que, verdadeiramente, planejam. Gerando primeiro a apreensão geral de uma medida radical demais para a sociedade; e, em seguida, a ideia de recuo e “moderação” de discursos, ao avançar com ideias um pouco menos duras do que as que tinham proposto inicialmente. Essa fórmula, de atirar no radicalismo primeiro, e negociar uma moderação em seguida, já é bastante conhecida e tem sido o modus operandi da extrema direita ao redor do mundo.

Por aqui, exemplos não faltam: nos últimos meses, cada vez que o cerco da Justiça aperta contra as conspirações da extrema direita, a pauta da restrição do aborto seguro, mesmo nos casos em que já é garantido por lei, volta a circular no Congresso. Há uma série de projetos de Lei que tentam negar de vez esse direito em qualquer caso, sob justificativas diferentes. Muitos deles geram comoção nas redes, entre apoiadores e contrários, agitam militâncias e milícias digitais, e não avançam. De vez em quando, um deles, como o PL 1904, que equiparava o aborto ao crime de homicídio, ganha força, e começa a avançar. Neste caso, é necessária uma atuação mais firme da sociedade civil, que organiza campanhas como a #CriançaNãoÉMãe, que chama atenção a essas propostas e faz pressão para seu arquivamento. Enquanto isso, líderes de extrema direita tentam pressionar em outras frentes, com projetos como os que proíbem doações a moradores de rua; pautas anti-LGBT ou campanhas contra o “banheiro unissex”. A chance de que essas pautas, conhecidas como “de costume”, avancem, são baixas - mas não são nulas. E quanto mais elas ganham espaço no debate público, mais elas ajudam a reforçar a identificação de setores da sociedade com a extrema direita, mais elas ajudam esses políticos a pautarem o debate público, desviando o foco do que eles não querem ver na capa dos jornais e, de quebra, mais elas empurram nossa visão do que é “inaceitável” e “absurdo” numa sociedade democrática. A consequência é que logo a gente consegue normalizar tudo o que pareça um pouco menos radical do que essas ideias. Por aqui, essas propostas ficaram conhecidas como “cortinas de fumaça”. Na Ciência Política, esse fenômeno gerou um conceito conhecido como “Janela de Overton”, que diz muito sobre a encruzilhada que o campo democrático tem enfrentado no debate público. E sobre como o olhar da política segue conceitos bem mais fluidos do que as nossas percepções sobre conservadorismo x progressismo, ou esquerda x direita podem sugerir.
A Janela de Overton
Se, por um lado, vemos a extrema direita cada vez mais radicalizada; por outro, no governo Federal, temos um representante de esquerda mas que parece muito dedicado a aderir a uma “moderação” radical.
Com o tempo, vemos os setores progressistas e à esquerda cada vez mais abrindo mão de convicções ideológicas para manterem seus papéis institucionais. Esse fenômeno foi observado pelo Joseph Overton, que emprestou seu nome ao conceito.
A ideia da Janela de Overton é a de que para alargar as possibilidades do que é aceitável no debate público, você não deveria defender coisas ligeiramente à margem dessa janela, mas sim jogar lá no extremo.
Ou seja, se você apoia uma política econômica mais protecionista, fechada para o exterior, você não se opõe só a um modelo econômico: você promove um ataque a todo e qualquer imigrante que sonhe em pisar em seu país. Se você apoia uma política de direita e conservadora, você não começa sua jornada defendendo menos impostos e uma centralidade maior da igreja e da família: você acusa todo o “sistema” de “esquerdismo” e associa qualquer ideia de progressismo e inclusão à corrupção, aumento de impostos e perversão moral. No processo, persegue grupos minoritários e os coloca como protagonistas desse sistema corrupto - em um dia, são as crianças trans; no outro, os indígenas que pedem demarcação de terras e logo em seguida, os professores e agentes públicos. Parece familiar?
Só que o efeito da Janela de Overton não é só sobre “se fingir” de extremista para avançar com ideias que, normalmente, seriam vistas como radicais. Mas, sim, combinar os efeitos de um discurso radical inflamado, com repetição massiva dessas ideias para aumentar a impressão de normalidade do discurso extremista e, como consequência, empurrar cada vez mais o debate público para essa radicalidade extrema. Ou seja, é “se fingir” de extremista, para avançar aos poucos com ideias radicais e, no fim do dia, virar extremista mesmo.
Parando para pensar, hoje, o Trump faz o George W. Bush parecer uma figura razoável; muitas vezes, o bolsonarismo fez João Doria, Kim Kataguiri e até Tarcísio de Freitas ficarem à esquerda das polêmicas nacionais; com a presença de Pablo Marçal na disputa de São Paulo, o segundo turno entre Guilherme Boulos e Ricardo Nunes (que está envolvido em suspeitas de esquema de corrupção, pretende privatizar escolas públicas e foi o relator do projeto Escola sem Partido em São Paulo) pareceu a realização de um sonho democrático.
E, no fim das contas, Trump volta para o segundo mandato, com propostas muito mais ousadas do que tinha para o primeiro. Se tudo der certo para ele, o Trump de 2025 vai te fazer sentir saudades do Trump de 2017.
Diante de tudo isso, parece óbvio sugerir que a esquerda siga o mesmo caminho: extremando seus discursos e radicalizando suas propostas, vendendo ideias bem mais agressivas do que as que pode propor de fato. E, com isso, esticar a corda - ou a janela - de volta para o campo da normalidade democrática. Não é?
Só que dominar a Janela de Overton não é tão simples quanto a extrema direita faz parecer. Mas temos indícios de que talvez não seja impossível driblá-la na disputa pela democracia.
Overton fecha uma porta, mas uma janela se abre no campo democrático

Massificar ideias extremistas pode parecer uma tarefa simples, de pura insistência. Mas, no mundo diversificado, hiperconectado e tecnológico em que vivemos, a batalha pela atenção pública é disputada com as máquinas mais poderosas do mundo. Fazer suas ideias ganharem as redes e as ruas custa, além de uma boa estratégia de comunicação, uma boa quantidade de dinheiro e um número grande de agentes dispostos a serem porta-vozes das mensagens-chave da disputa política. Em todo mundo, think thanks, bilionários conservadores, donos de canais de mídia e outros agentes com poder econômico, têm se mostrado dispostos a financiar projetos de extrema-direita. O mesmo não acontece com o campo da esquerda, que não privilegia ou glorifica esses poderosos em seus discursos. Tanto é que um dos ícones do bolsonarismo, Enéas Carneiro, nunca conquistou projeção suficiente para se tornar presidente da República nos primeiros anos de redemocratização.
Além disso, não há dinheiro no mundo que faça as ideias mudarem da água para o vinho. O que lideranças como Bolsonaro, Trump e Milei escancaram para nós, é que o Brasil e o mundo ocidental são muito mais conservadores do que costumávamos achar. Pautas de defesa da família e de valorização da ordem social como ela está posta encontram rapidamente eco e apoio na sociedade. A ideia, promovida pela extrema-direita, de que esses valores estão sob ataque a partir de projetos por igualdade racial ou de defesa LGBT, faz apitar um alarme de perigo na cabeça das pessoas a cada vez que elas ouvem um político de esquerda falar. Enquanto a esquerda tenta emplacar projetos de transformação social, a extrema-direita aparece como defensora do mundo como ele está - e fala diretamente daquilo que as pessoas conhecem.
Mas continuar no velho discurso de que “a esquerda precisa voltar para as bases e abandonar as pautas identitárias” não vai nos ajudar a avançar nessa pauta. Se não temos a estrutura e as vantagens que a extrema-direita têm para empurrar o discurso público cada vez mais para o radicalismo, podemos nos aproveitar de algumas brechas para desemperrar essa janela de Overton para o lado democrático da força.
É hora de partir de consensos: pautas como o fim da escala 6x1, que movimentaram as redes, as ruas e as eleições nas últimas semanas, nos mostram como colocar o debate no ponto em que as pessoas concordam é mais efetivo. De fato, há ainda muito debate sobre os efeitos econômicos e a viabilidade de uma escala global 5x2 ou mesmo 4x3, mas o movimento ganha força cada vez que se reforça que trabalhar 6 dias para 1 dia de folga é bastante abusivo. Por isso a pauta cresceu tanto através de um slogan tão simples como “vida além do trabalho”.
Trabalhe em temas concretos e gerais: se a direita radical tem capital suficiente (em todos os sentidos) para dominar a pauta de valores, a vida real acaba se impondo diante das ideias. Por isso que falas como a da “picanha e cerveja” prometida pelo Lula foram tão fortes nas eleições de 2022. É um jeito concreto de trabalhar, ao mesmo tempo, a necessidade (segurança alimentar) e o desejo (a prosperidade e o lazer das famílias). Em um mundo de gurus com promessas milionárias, prometer - e cumprir - sonhos concretos e possíveis pode chamar rapidamente a atenção.
Politize os eventos: boa parte do sucesso da campanha de Joe Biden em 2020 com o eleitorado negro foi creditado à campanha Black Lives Matter. O assassinato brutal de George Floyd motivou um levante negro no país e no mundo, e ao invés de explorar essa revolta, com tons melodramáticos e entrevistas com a família, o movimento negro se uniu em torno de exigências, propostas e mobilizações. No Brasil, o mesmo efeito foi visto na campanha #CriançaNãoÉMãe, que barrou o projeto conhecido como “PL do Estuprador”. Há uma linha tênue entre a “exploração midiática” e a “politização dos eventos”. Para o campo progressista, essa pode ser a linha da ação. A ideia de quem está lá, “na hora do vamos ver”, junto com o povo construindo a mobilização e buscando mudanças reais. Não era a hora de discutir o direito ao aborto, mas de garantir a saúde de crianças abusadas no país.
O fim da escala 6x1, a licença paternidade ampliada, renda básica universal, taxação dos super ricos, paridade de gênero e racial na política, o fim da obrigatoriedade do alistamento militar, tarifa zero… Há um vasto horizonte de bandeiras que podem ser levantadas e que podem reunir sonhos de uma vida melhor, resolução de problemas concretos e transformação real na vida das pessoas. Se a extrema-direita tem aparelho para se radicalizar ideologicamente, o campo progressista tem a chance de radicalizar na defesa e no aprofundamento do legado do regime democrático que já existe na vida das pessoas. A razão pela qual defendemos um regime democrático, pautado nos direitos humanos e na diversidade de visões e ideias, é pela sua capacidade de entregar uma vida melhor para as pessoas. Se há um caminho para deslizarmos essa Janela de Overton, nos parece que é mostrar a capacidade da democracia de criar um mundo melhor.
Nesse texto, organizamos algumas pautas e oportunidades de disputa política que temos identificado com potencial de disputa da sociedade de uma perspectiva progressista, democrática e humanitária. Mas e quanto a você, leitor: quais as bandeiras que te parecem mais fortes e estratégicas para o campo progressista promover nos próximos anos?
Conta pra gente, em resposta a esse e-mail?
Um abraço,
Equipe do Projeto Brief.