ENTREVISTA | DeepSeek: 8 perguntas sobre o futuro da IA - e da política
Uma conversa com Ana Freitas sobre como uma nova inteligência artificial vinda da China prometeu (e conseguiu) ameaçar o mercado de tecnologia em todo mundo.
Olá, assinante!
Talvez você não seja um aficionado pelo mundo da tecnologia e das big techs. Claro, provavelmente você usa, com alguma frequência, alguns dos serviços das grandes plataformas do mundo - redes sociais, serviços digitais e até mesmo os inovadores serviços de Inteligência Artificial. Para quem não acompanha os desdobramentos desse universo no dia a dia, não é tão fácil entender como o lançamento do DeepSeek, uma nova plataforma de inteligência artificial, causou tanto impacto. O novo chatbot lançado por uma companhia chinesa viralizou, tornando-se rapidamente campeão de downloads e dominou as manchetes e trending topics em todo mundo. Como resultado, as grandes companhias americanas de tecnologia perderam muito valor de mercado do dia para a noite. Por mais que pareça inofensivo, o DeepSeek prometeu entregar tudo o que serviços consolidados, como o ChatGPT, já entregam. Mas o serviço é oferecido de maneira totalmente gratuita aos usuários, e teria sido criado a um custo de produção exponencialmente menor que os seus concorrentes. Além disso, o DeepSeek chegou em modelo open source, com a divulgação do código para que outros repliquem e aprimorem livremente o serviço. A novidade, vinda da China, atinge o mercado bem no momento em que as big techs dos Estados Unidos ganham protagonismo na nova gestão Trump, com novos aportes e investimentos bilionários. Ao que parece, o DeepSeek mirou na inovação tecnológica, e acertou o coração da disputa geopolítica.
Tá, mas o que a gente tem a ver com isso (se é que a gente tem algo a ver)? Na polarização política e na radicalização de discursos que dominam a internet, é difícil entender o que de fato significa a chegada do DeepSeek: instrumento de espionagem e dominação chinesa, ou uma ameaça ao império tecnológico norte-americano?
A resposta, quase sempre, não está em nenhum dos polos, nem no caminho do meio. E, para isso, chamamos Ana Freitas, diretora da Quid, colaboradora do Projeto Brief e especialista em conteúdo digital e mercado da Inteligência Artificial, para explicar o que de fato a chegada do DeepSeek representa no mundo, e nas nossas vidas.
Aliás, se quiser aprofundar essa discussão, sugerimos a leitura do artigo que ela publicou nas suas redes sociais. E fica até o final, que temos outras dicas pra você se aprofundar no tema.
DeepSeek, IA chinesa e Big Techs: e você com isso? | Entrevista com Ana Freitas
Afinal, o que é DeepSeek? É como um “ChatGPT da China”?
O DeepSeek chegou como um Large Language Model (LLM), o que significa que ele é um modelo de inteligência artificial, um chatbot, treinado com um volume grande de dados, e que aprende por meio de linguagem e de réplica de padrões de linguagem. Isso significa que ele constrói seu repertório de com base em documentos, informações e interações com os usuários da ferramenta. Então é um modelo muito conectado à linguagem e às associações semânticas. Ou seja, é uma boa definição, sim, dizer que o DeepSeek é “um ChatGPT da China”. Não da China em si, ou do governo chinês. Mas de uma empresa chinesa. Ele é muito parecido com o ChatGPT em termos de interface. O DeepSeek usa um modelo de raciocínio, o “deepthink”, que é muito parecido com o chat GPTo1 — um modelo de raciocínio da OpenAI, lançado há alguns meses. Aliás, o DeepSeek, às vezes, chega a dizer que é o próprio ChatGPT, se você perguntar.
Por que esse lançamento causou tanta confusão no mercado? E por que não param de falar dele?
Na verdade, o DeepSeek foi lançado no fim do ano passado, mas ele se tornou muito popular nesta semana porque o aplicativo dele viralizou na AppStore, passando o número de downloads, inclusive, do ChatGPT. Isso gerou um buzz muito grande, especialmente por conta do modelo de raciocínio que ele usa, e por ser uma IA vinda da China, que joga na outra ponta dessa polarização global. A gente está diante de uma corrida por desenvolvimento tecnológico de Inteligência Artificial, como se fosse uma “guerra fria” dos nossos tempos. O lançamento do DeepSeek vem como um marco importante do posicionamento e da capacidade da China e de suas empresas, de desenvolverem modelos de linguagem competitivos com relação às empresas americanas. Os Estados Unidos e as empresas americanas são as que estão (ou, até agora, estavam) na frente em desenvolvimento de Inteligência Artificial. E além disso, ele é um serviço gratuito. Gratuito para uso, sem limites, na própria interface do aplicativo. E também um modelo gratuito para uso via API, que é o processo de conectar uma tecnologia a outras aplicações. E também gratuito em termos de código de programação: ao ser divulgado no formato “open source”, com o código de programação aberto e disponível, outros desenvolvedores podem investigar o código do DeepThink, trabalhar a partir dele, expandir suas funções e até criar outras inteligências artificiais a partir dele.
O lançamento da Deepseek chega em seguida a uma série de mudanças no mundo das Big Techs, com a volta de Trump. Como esses acontecimentos se relacionam? (Aliás, eles se relacionam de alguma forma?)
Recentemente, o governo americano anunciou um investimento de US$ 500 bilhões em um projeto chamado Project Stargate, para acelerar o desenvolvimento de inteligência artificial e garantir a supremacia dos Estados Unidos no desenvolvimento dessa tecnologia. E o DeepSeek chegou, ou ficou famoso, pouco depois do anúncio do Project Stargate. Isso bagunçou um pouco as coisas, pelo volume de dinheiro. US$ 500 bilhões é muito dinheiro. O DeepSeek alega ter chegado na qualidade do modelo que a OpenAI tem; alegando, inclusive, superar, em alguns critérios e benchmarks, o ChatGPT. E, pelo que O DeepSeek alega, o custo para criar e treinar este modelo girou em torno de US$ 5 milhões. É um valor muito menor do que o usado por qualquer serviço dos Estados Unidos que está competindo com ele. A gente não sabe até que ponto esse valor é real, ou representa o total do valor que foi usado, nem se ele contempla mesmo todos os gastos que as outras empresas que estão desenvolvendo inteligência artificial, e buscam investimentos em valores maiores. Então é importante observar isso e ficar atento para esse desdobramento.
Por que o “custo” da plataforma e seu modelo de “código aberto” despertaram tanta atenção e debate?
O DeepSeek chegou com um custo relativamente baixo para treinar um modelo de inteligência artificial dessa qualidade. Nós já temos registros de executivos da OpenAI alegando que, com um valor tão baixo, não daria para se fazer muita coisa em termos de desenvolvimento de IA. A OpenAI sempre alegou que precisa gastar muito dinheiro para fazer bem o trabalho que ela executa. Inclusive, a OpenAI está agora acusando o DeepSeek de ter copiado parte do código do ChatGPT, num processo de vazamento de informações sigilosas, de espionagem industrial. Vamos acompanhar o desenrolar disso. Essas acusações estão em um nível muito inicial e é uma “fofoca” séria do mundo das big techs, envolvendo segredos industriais. Mas o debate e a atenção ainda estão para o custo da plataforma e o fato de ser código aberto, porque é, de fato, muito mais barato do que as empresas dos Estados Unidos alegam precisar para treinar seus modelos. O que representaria, de todo modo, uma capacidade grande de inovação da China. E o modelo de código aberto é porque não tinha chegado, ainda, um modelo tão bom. O Llama, da Meta, é um modelo de código aberto. Mas o Llama não é tão bom quanto o DeepSeek. Nem seu modelo de código aberto é tão bom. A maioria dos modelos tão bons, que é o caso do ChatGPT, são serviços pagos. E também não apresenta um modelo de código aberto, que é a possibilidade de você, de fato, abrir esse código e criar um novo, uma outra IA em cima desse código.
Como o DeepSeek se tornou “culpado” pela desvalorização das grandes empresas de tecnologia nesta semana?
Uma vez que você é investidor de tecnologia e vai investir em uma empresa, e você ouve: “olha, eu preciso de US$ 100 mil pra fazer esse lindo software”. E aí vem outra empresa e fala: “na verdade, eu fiz um software tão lindo quanto, e não precisei nem de US$ 10”. Isso faz você questionar por que que a empresa na qual você investiu sempre precisa de tanto dinheiro e vale tanto dinheiro. Agora, o que resta descobrir é se é, de fato, verdade que o DeepSeek custou apenas US$ 5,5 milhões pra ser treinado. E se essa planilha de custos está levando em conta as mesmas linhas que os competidores nos Estados Unidos estão.
Mas, afinal, o DeepSeek é seguro? Podemos confiar nas informações recebidas pela ferramenta, e na privacidade e segurança dos nossos dados?
Quando me perguntam se uma inteligência artificial é segura, a minha resposta é sempre que é tão segura quanto qualquer outra Big Tech com a qual a gente divide dados todos os dias. Tão segura quanto usar o Messenger no Facebook, a DM do Instagram, tão segura quanto usar qualquer uma dessas plataformas. Ou seja, provavelmente não muito, mas a gente usa mesmo assim. Recomendo ler as políticas de uso de qualquer inteligência artificial que você for usar, porque ali vão ter revelações importantes sobre como seus dados podem vir a ser usados. Também acho importante nunca colocar dados pessoais sensíveis nessas plataformas (e-mail, telefone, CPF, etc.) – nem seus, e nem de terceiros. A própria LGPD versa sobre isso, não é nem uma recomendação minha. Procure também anonimizar, disfarçar, ou maquiar dados que não são privados, mas que sejam dados sensíveis de alguma forma. E claro, respeite também as políticas de uso de inteligência artificial. Se você estiver usando IA para trabalhar, é fundamental respeitar as políticas de uso de IA da empresa para qual você trabalha.
O debate sobre o DeepSeek fala muito sobre o futuro da tecnologia e da humanidade. Faz sentido? O que está em jogo por trás dessa novidade?
O debate sobre DeepSeek esquenta essa corrida, essa guerra fria, em busca da supremacia do desenvolvimento dessa tecnologia, e que é uma tecnologia que está avançando numa rapidez até difícil de explicar para quem não está vendo tão de perto. É muito rápido, é exponencial a velocidade de desenvolvimento dessa tecnologia. Mas, quanto mais rápido é esse desenvolvimento, essa corrida, ela também se torna prejudicial para aqueles que se preocupam com o desenvolvimento seguro da inteligência artificial. Quando a gente fala de inteligência artificial, o próximo passo é a AGI, que é a Inteligência Artificial Geral. E a Inteligência Artificial Geral é uma evolução do que a gente tem hoje em termos de inteligência artificial, que não é só “um chatbot mais inteligente”. A gente está falando de modelos que são tão capazes quanto humanos - ou até mais - de resolver problemas complexos, em diversos campos do conhecimento. E o desenvolvimento da AGI é um marco, esperado, e que todo mundo que olha para isso sabe que é uma questão de tempo para ela chegar e mudar tudo. É a eficiência da inteligência artificial em uma escala maior, e isso também imprime riscos para a sociedade e a própria existência da humanidade. Quando a gente tem uma corrida tão feroz pelo desenvolvimento e pelo avanço da tecnologia, você acaba deixando de lado algumas preocupações em termos de segurança que podem ajudar a mitigar esses riscos. Então, o que essa questão do DeepSeek escancara, nesse momento, é justamente uma disputa muito fundamental para a nossa existência como humanidade, na verdade.
E afinal, e a gente com isso? Tá todo mundo prestando atenção na DeepSeek… Eu devia prestar atenção também?
Vamos falar do âmbito individual. Se você usa o ChatGPT, ou Claude, recomendo que você teste o DeepSeek, mas você não vai verificar diferenças muito grandes. Não é que ele é melhor de maneira tão perceptível. Pode ser que tenha uma tarefa ou outra que você teste em 2 plataformas e pense que determinado modelo está melhor, ou que o DeepSeek ganhou, mas isso não vai ter implicações que vão mudar o seu cotidiano a ponto de você falar: “olha, agora sim, a IA faz sentido pra mim porque o DeepSeek entrega mais ou melhor que o resto”. É um modelo muito parecido com o ChatGPT e com o Claude. A grande questão do DeepSeek, é justamente a questão geopolítica e o que esse debate e a existência dele representam. É a aceleração dessa corrida, e o que isso significa - para a humanidade e o planeta. Então, sim, você deveria prestar atenção nisso, mas muito mais por conta dessa perspectiva de disputa geopolítica.
#RadarBrief | A dança das cadeiras no mercado de IA
Como vimos nesta entrevista, a chegada do DeepSeek no mercado de IA envolve muito mais camadas do que parece em um primeiro momento. Por isso, separamos algumas dicas para você se aprofundar nas implicações tecnológicas, políticas e sociais dessa corrida pela Inteligência Artificial em todo o mundo.
DeepSeek: tudo que você precisa saber - das questões políticas ao exagero (ou não) do hype: coluna de Ana Freitas publicada no perfil Anacron.IA, com análises e atualizações sobre o mundo da Inteligência Artificial. Aliás, a coluna foi escrita com o auxílio do Claude, outro gigante do mundo dos chatbots.
Os episódios dos podcasts Café da Manhã, da Folha de São Paulo, e O Assunto, do G1, compilaram resumos, análises e debates sobre a importância da Corrida por Inteligência Artificial no mercado global.
O artigo O que é DeepSeek e por que ele está causando queda nas ações da Nvidia e de outras empresas? detalha as movimentações no mercado de tecnologia e nas bolsas de valores do mundo causadas pela viralização do DeepSeek - e quais acusações, alegações e boatos estão por trás de tanto pânico financeiro.
E ah! Também vamos divulgar a entrevista com Ana Freitas, na íntegra, em áudio e com destaques lá no Instagram do Projeto Brief. Segue a gente por lá e ative as notificações para não perder nenhuma novidade.
Uma curiosidade: para testarmos na prática a eficiência do DeepSeek, decidimos testar a plataforma como um assistente de pauta, que nos ajudou a identificar e escrever as melhores perguntas para essa entrevista, e depois editar o texto final para a newsletter. De fato, o resultado foi prático, intuitivo, e bastante semelhante a ferramentas como o ChatGPT e o Claude, com suas vantagens e dificuldades - incluindo algumas “quedas” do sistema por excesso de usuário. De forma geral, desde que a gente não questione a história da China, ele responde bem às nossas solicitações. Até na politização e inconsistência de certos assuntos, essa inteligência artificial parece similar aos concorrentes dos Estados Unidos.
E quanto a você? Como tem se relacionado e se apropriado da Inteligência Artificial? Já conseguiu adotar seu uso no dia a dia, ou ainda enxerga com desconfiança este mercado que promete ser o futuro da tecnologia? Conta pra gente, em resposta a este e-mail, e vamos fortalecer a discussão sobre a relação entre tecnologia, sociedade, política e democracia.
Um abraço,
Equipe do Projeto Brief.
Obrigada pela entrevista! Senti falta de uma pergunta sobre a questão do impacto ambiental dessas empresas e ferramentas. Ouvi dizerem que o deepseek teria menos impacto que as demais, mas não vi nada aprofundado e embasado
Excelente entrevista